Diário do Espectador A Cidade dos Rios Invisíveis: Ruy Filho

Diário do Espectador A Cidade dos Rios Invisíveis: Ruy Filho

  • Coletivo Estopô Balaio
  • 26 de Junho de 2016

Depoimento do crítico de teatro Ruy Filho sobre A Cidade dos Rios Invisíveis. Ruy assistiu o espetáculo na temporada de 2014.

 

"este final de semana assisti A Cidade dos Rios Invisíveis, do coletivo Estopo Balaio, no Jardim Romano. nos quarenta minutos de ida, olhando a janela e ouvindo um texto descritivo sobre os bairros cortados pelo trem, em tom lindamente poético, muito retornava da sensação de quando criança deixei SP e, ano a ano, fomos nos afastando da cidade, dos bairros elegantes, nos aproximando das periferias em um nordeste de trinta anos atrás. havia em cada instante, em cada cena, cada casa e cão de rua um pouco das lembranças que perdi por uma suposta proteção. lidar com as memórias não é fácil. Ao final, reconheço um garoto, ele já havia me olhado, e percebo se tratar de um traficante. sim, talvez eu fosse estranho demais para ele, ou talvez meu interesse em cada pessoa, cada detalhe, cada porta entre-aberta, cheiro de café caseiro, grafite, tênis amarrado nos fios, tivessem feito desconfiar de tamanha atenção. ao sair, cruzo com a viatura e seus dois policiais. eles tampam o rosto ao cruzarem comigo, como se coçassem os olhos ou sei lá o quê, e seguem lentamente ao menino traficante em busca de suas partes. é dia, ainda, e tudo está sem nenhuma preocupação. poucas vezes o teatro consegue te expor de forma tão evidente. entre cenas mais prováveis e esperadas na relação entre a comunidade local e o inevitável tom de depoimentos, algumas surgiam com tamanha maestria que era impossível não se encantar. desde a recepção no bairro, divertida, irônica, cantada, e suas invasões dos espaços, e os moradores recitando os textos em suas janelas, ou o corredor estreitíssimo separando por pouco de um metro as portas, cujas paredes todas apresentavam-se repletas de poesias sensacionais de alguém que autonomeia Rata. As crianças do bairro e suas participações impossíveis de controlar. Ou a cena deliciosamente ridícula e inesperada do garoto travestido sensualizando em frente ao rio fétido e apodrecido, até os instantes finais e o ótimo discurso ao rio e a nós mesmos. A peça poderia chamar A Cidade dos meus Eus Invisíveis. Estar no Jardim Romano trouxe de volta um bom pedaço de mim, e deixou outros que não terão como se arrumar mais."

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