Trens da CPTM são palco para histórias de migrantes em São Paulo

  • Diário Oficial
  • 04/07/2017

encontro dos artistas com o público ocorreu na Estação Brás da CPTM. A cada recém-chegado, um ator se aproximava, o orientava e explicava que seria seu guia durante todo o percurso de trem. “A gente aborda na chegada para passar segurança. Como somos 17 e nosso limite de participação é 50, cada um fica com duas ou três pessoas”, explicou a atriz Ana Carolina Marinho. Na semana passada, o grupo apresentou uma etapa do seu projeto itinerante Nos Trilhos Abertos de um Leste Migrante, inspirado nas histórias de migrantes usuários da CPTM. A estreia do espetáculo completo será em outubro, em data a ser definida e a mesma estação como ponto de encontro. “Começamos a desenvolvê-lo há três anos e, durante esse tempo, oferecemos serviço de escrita de cartas nas estações para pes soas não alfabetizadas que queriam mandar notícias a seus entes queridos. Escrevemos mais de 400”, conta a atriz.

O processo fez parte da pesquisa para a realização artística, que tem como um dos objetivos cen - trais, assim como nos outros trabalhos do grupo, a vinculação de espaços públicos da cidade e do seu uso pelos migrantes à dramaturgia. “A partir das cartas, selecionamos alguns remetentes e, por meio de seus relatos, criamos as peças encenadas nas linhas de trem, todas partindo do Brás. São três personagens reais, que compõem etapas complementares do mesmo espetáculo: Carta 1, a infância; Carta 2, a mulher; e Carta 3, a velhice”, explica o ator João Júnior. Seu Vital – “Hoje, a gente vai abrir a Carta 3, a velhice, nesse procedimento que foi subsidiado pelo Programa Rumos, do Itaú Cultural”, anunciou João no início da apresentação. Cada um dos participantes, inscritos antecipadamente para assistir à peça, recebeu um equipamento de MP3 com fones.

Segundo Carolina, o áudio ouvido durante o percurso pela linha 10, que segue até Rio Grande da Serra, foi construído a partir de três aspectos: a história de vida de seu Vital, de 75 anos, o protagonista da carta, as paisagens do percurso e a história da América Latina. “Também teve inspira- ção no livro de Eduardo Galeano, As veias abertas da América Latina”, informa a atriz, enquanto mostra o mapa do continente pintado na sua mão tal qual estampa a escultura criada por Niemeyer, símbolo do Memorial da América Latina. Ela conta ainda que a escolha da histó- ria de seu Vital, diferentemente das outras duas, não teve origem na procura dele pela escrita de carta. “O conheci antes, em um sarau no bairro em que mora, Itaim Paulista, no qual estava tocando sanfona”, lembra. Assim, o mineiro de Mariana passou a acompanhá-la para tocar o instrumento nas estações enquanto ela escrevia cartas e revelou que gostaria muito de ter escrito para a mãe enquanto estava viva, mas na época era analfabeto. Enfim, artista – “Ele trabalhou na roça, em mineração, como eletricista e metalúrgico, mas o seu sonho era ser artista, tocando sanfona.

Depois da aposentadoria, resolveu estudar para ler e escrever as próprias partituras e foi atrás do sonho. Sua trajetória nos inspirou. Gravamos entrevistas, nas quais seu Vital ditou as cartas que gostaria de ter mandado para a mãe”, diz Carolina. “Estou muito contente, com boa vontade a gente aprende”, disse o próprio Vital, após receber o público da Carta 3 na esta- ção final com uma apresentação de sua música. Compondo a plateia, outro artista, o compositor e cantor Chico César, o parabenizou e lhe ofereceu um CD de sua autoria. Casado com Bárbara Santos, uma das atrizes do espetáculo, Chico César fez questão de prestigiar a iniciativa cultural, que considera uma forma de valorização da humanidade da arte, por acontecer fora dos ambientes restritos, como as salas de espetáculo. “No primeiro dia, não consegui chegar a tempo e somente peguei o finalzinho da história, que era sobre uma pernambucana que trabalha como segurança na Estação Brás. Por isso, agora, corri para participar desde o começo”, explicou o cantor.

Assim como ele, o bailarino Lucas Valente, 26 anos, foi convidado por um integrante do coletivo, mas diz que se entusiasmou em comparecer por causa da abordagem diferente, que revela partes da cidade. “Somente tinha feito esse trajeto antes quando era pequeno.” A itinerância da apresentação também foi um atrativo especial para a antropóloga Lilian Cardoso, 27 anos. “Fiquei interessada especialmente no audiotour e no uso do transporte público, que transformam o espetáculo em espaços de passagem”, destacou. 

 

Foto: Andre Cherri

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