Espetáculo conta a história de migrantes invisíveis

Nem tudo é visível das janelas dos arranha-céus nas grandes cidades. Por trás dos expressivos números de habitantes, cada metrópole esconde em si vozes, saudades e outros processos que muitas vezes não habitam o mesmo lugar delimitado pelo mapa. E foi exatamente por este lugar subjetivo que o ator e diretor potiguar João Júnior caminhou desde que se mudou para São Paulo.

A experiência de solidão e não pertencimento à selva de pedra, muito menos à noiva do sol, acabou desaguando na experiência “Portar(ia) Silêncio”, espetáculo cuja última apresentação de uma temporada especial por Natal está marcada para hoje às 20h no Barracão dos Clowns de Shakespeare, grupo, aliás, ao qual João Junior também já pertenceu um dia.

“Um ano depois que me mudei para São Paulo ainda tinha coisas que não conseguia entender dentro desse processo migratório. E não falo da migração que a gente aprende na escola. Não sou um número, então por isso eu resolvi investigar como tinha sido esse processo com outros nordestinos”, comenta sobre o início da pesquisa.

A sensação de invisibilidade, solidão e o desejo de pertencimento lhe levaram aos cinco primeiros entrevistados, coincidentemente todos porteiros. O fato acabou fechando a sua pesquisa, portanto, em porteiros nordestinos, e assim nasceu a base do espetáculo. Ao total nove foram entrevistados para compor a colcha de retalhos da peça.

“Eu não sai com a ideia de entrevistar porteiros, e sim nordestinos, mas a própria pesquisa acabou me direcionando para esse recorte e foi incrível porque usei a portaria como esse ‘não lugar’... como essa metáfora para esse trabalhador do silêncio e da espera”, comenta o ator, afastando a produção, no entanto, de qualquer interpretação de cunho social.

“A peça não foi criada para falar da situação do porteiro no Brasil ou coisa parecida, e sim para tratar dessa experiência de migração que foi tão comum a eles e a mim mesmo... Acabei descobrindo, por exemplo, que o porteiro do meu prédio era um tocador de gaita incrível”, completa.

O questionário aplicado aos entrevistados seguia um certo roteiro, começando pelas memórias mais longínquas do lugar onde todos os porteiros haviam nascido, até chegar na pergunta final, tratando justamente sobre o desejo de voltar para casa.

“Todos eles querem voltar, mas eu acho que nenhum deles vai voltar, entende? Fica essa sensação que é a minha também! Eu já estou lá há sete anos, e percebo esse desejo de retorno que nunca acontece. Tem caso, por exemplo, de um entrevistado que está em São Paulo há cinquenta anos e vive até hoje dizendo que vai voltar”, ilustra.

Híbrido, o espetáculo mistura vídeos, áudios de alguns depoimentos e ainda a performance para contar a experiência do próprio João Júnior enquanto habitante de São Paulo. “Eu não consegui falar sobre isso, então resolvi dançar todas as minhas questões”, argumenta.

Tudo é acompanhado por vídeos que ele começou a registrar desde que chegou a São Paulo: cenas comuns, de seu cotidiano, que juntas formam uma espécie de diário em vídeo. “E é por isso que esse espetáculo surge antes mesmo que eu pensasse de fato nele”, diz.

Em cena, o foco não é dar vida a essas nove vozes entrevistadas, e sim entrelaçar todas essas situações vividas pelos porteiros a partir do próprio João Júnior e sua portaria, palco de memórias, desejos e dramaturgia.

Indicado pelo jornal “Folha de São Paulo” como um dos melhores espetáculos da cidade durante sua temporada de estreia no Centro Cultural de SP em 2011, Portar(ia) Silêncio acabou de ser apresentado também em Portugal, na cidade de Porto, onde João Júnior percebeu a universalidade do projeto.

“Ainda mais nesse momento onde todos estão muito sensibilizados pela foto do menino sírio morto em uma praia da Turquia. Quer dizer, o Navio Negreiro se repete! A Europa usa tudo da África e depois diz “vocês não podem entrar aqui’”, critica, mencionando a imagem que chocou o mundo e se tornou um triste símbolo da crise migratória que já fez milhares de vítimas do Oriente Médio e da África.

Experiências com o teatro documental

A experiência de pesquisa documental sobre o processo migratório originou ainda o Coletivo “Estopô Balaio”, formado por João Júnior em 2011 reunindo principalmente atores e atrizes migrantes, como os potiguares Juão Nin e Ana Carolina Marinho. No total, o grupo possui 16 integrantes fixos.

Até então todos os três espetáculos do grupo “Daqui a Pouco o Peixe Pula” (2012); “O Que Sobrou do Rio” (2013) e “A Cidade dos Rios Invisíveis” (2014) são baseados nas memórias afetivas e sociais dos habitantes do bairro Jardim Romano, uma das regiões mais “nordestinas” de São Paulo.

“O bairro é formado praticamente por nordestinos ou filhos de nordestinos, então sentimos uma identificação muito grande com esse lugar logo de cara”, explica João Junior sobre o bairro da zona leste de São Paulo, marcado por uma forte enchente que durou cerca de quatro meses no ano de 2009.

“Até hoje algumas casas possuem marcas dessa grande enchente nas suas paredes”, afirma, informando ainda que a sede do grupo também fica no bairro, muito embora todos os espetáculos sejam ensaiados na rua e contem com a participação ativa dos moradores.

“As crianças formam o coral, as casas servem de locais para ensaio... E os próprios moradores do bairro estão se descobrindo como atores e atrizes, participando ativamente dessa construção junto conosco”, garante João, lembrando que o espetáculo mais recente de grupo, “A Cidade dos Rios Invisíveis” é também uma verdadeira viagem subjetiva ao Jardim Romano.

Tudo começa dentro dos trens da CPTM, onde o elenco percorre junto com o público o trecho entre as estações Brás e Jardim Romano da Linha 12-Safira, disponibilizando para cada passageiro um aparelho de áudio que vai narrando as histórias por trás das paisagens que cada um vai vendo.

“E então nós seguimos para o Jardim Romano, onde a peça continua nas ruas até chegar às margens do Rio Tietê, com os atores andando em câmera lenta e se perguntando sobre o futuro ao pôr do sol. É muito forte”, resume sobre o espetáculo considerado um êxito de crítica e público, e que vai abrir a “X Mostra-Latino Americana de Teatro de Grupo” nos dias 31 de outubro; 1 e 2 de novembro.

Em cinco anos de atividade, o grupo já conquistou diversos reconhecimentos, como o próprio “Programa Municipal de Fomento ao Teatro para a Cidade de São Paulo”, um dos mais concorridos da capital paulista, e que tem como objetivo apoiar a manutenção e criação de projetos de trabalho continuado de pesquisa e produção teatral.

“Agora estamos nos preparando para lançar um documentário sobre as nossas atividades, dirigido pelo cineasta Cristiano Burlan”, finaliza João citando o filme que vai revelar os bastidores das montagens e principalmente a relação do grupo com o bairro Jardim Romano.

 

PORTAR(IA) SILÊNCIO (Coletivo Estopô Balaio)

Quando? Hoje

Que horas? 20h

Local? Barracão dos Clowns de Shakespeare (Av. Amintas Barros, Nova Descoberta, 4661)

*Ingressos a venda na bilheteria do local | R$ 30 (R$ 15/meia).

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