Crítica: Enchentes da Alma
Até que ponto a arte é capaz de agir como elemento de mudança em momentos tão intensos de trauma social e íntimo?
Estopô Balaio, novo documentário do diretor Cristiano Burlan, traz consigo esta difícil pergunta a partir dos esforços do coletivo que dá nome ao filme. Presente na comunidade de Jardim Romano, localizada na periferia de São Paulo, ele serve como alento a uma realidade tão dura que, infelizmente, é uma triste rotina para milhões de brasileiros das classes menos abastadas, moradores nas maiores cidades do país.
A abertura do longa-metragem, de imediato, despeja tamanha dificuldade. Cenas caseiras retratam a invasão das águas durante uma enchente no rio Tietê, percorrendo corredores e vielas sem qualquer controle. O relato da moradora não apenas ressalta a gravidade da situação, como também revela uma certo reconhecimento do ocorrido. A consequente informação de que a grande enchente ocorrida em 2009 se repete, ainda em 2015, aponta o crônico problema da ausência do poder público, no sentido de melhorar a vida daquelas pessoas. É como se elas ali estivessem abandonadas, à própria sorte.
Ao massacre diário da falta de assistência se juntam os inevitáveis problemas pessoais, por vezes intrinsecamente relacionados. Com habilidade, o diretor dedica a primeira metade do documentário a revelar o próprio Jardim Romano: não apenas seus problemas e localização, mas também quem são as pessoas que lá residem e como é a vida que levam. Há momentos cativantes, como a entrevista com as crianças, tão familiarizadas com as enchentes, e a visita à casa das duas senhoras, veteranas da situação e extremamente simpáticas. Pouco a pouco, momentos em que o coletivo atua são inseridos na narrativa, de forma a retratar o quanto influenciam na dinâmica local.
Estopô balaio, segundo o próprio criador do coletivo, é uma expressão nordestina que significa algo que precisa ser dito, por estar entalado na garganta. Estopô Balaio, o documentário, assume esta postura ao registrar o descaso e o abandono do Jardim Romano, ao mesmo tempo em que retrata a reação das pessoas através da arte. Contundente e delicado, o longa-metragem foge do lugar comum de exaltar pessoas ou movimentos para absorver a essência da proposta implementada e no quanto ela modifica a vida local. No fim das contas, é isso que importa. Belo filme.
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