A peça que transformou as enchentes do Jardim Romano em arte

Seguindo os passos do Teatro do Oprimido, o espetáculo 'A Cidade dos Rios Invisíveis' começa na estação Brás da CPTM, chega até o Jardim Romano e caminha por suas ruas e becos até alcançar as margens do rio Tietê.

Foto no topo: Larissa Zaidan/ VICE

Keli Andrade passou três meses com a casa alagada. Cozinhar, ir até a padaria ou levar as filhas pra escola era um sacrifício em meio a quantidade abissal de água e lama que batia na altura de seu peito. Keli estudou teatro. Tornou-se atriz. E, agora, interpreta sua própria história, assim como outros moradores do Jardim Romano, bairro no extremo da zona leste de São Paulo, com o espetáculo A Cidade dos Rios Invisíveis, em cartaz até 30 de abril. 

Atores profissionais e iniciantes se misturam na iniciativa do Coletivo Estopô Balaio, formado por artistas que deixaram o Rio Grande do Norte para se aventurar nas periferias da capital paulista construindo histórias junto com quem mora ali.

Os integrantes do Coletivo Estopô Balaio. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Tal "método" remete a alguns conceitos do Teatro do Oprimido, desenvolvido na década de 70 pelo dramaturgo e teórico Augusto Boal, com técnicas que transformam arte em ferramenta política, crítica e social. 

Durante anos de pesquisa pela América Latina, Boal, morto em 2009, defendeu ferrenhamente a democratização dos meios de produção teatral, o protagonismo das camadas menos favorecidas da sociedade e o diálogo. Ele prezava também pela destruição do muro invisível que separa atores e espectadores. "Os públicos populares estão sobretudo interessados em experimentar, ensaiar e se chateiam com a apresentação de espetáculos fechados", escreveu certa vez.

Não há tablado ou coxia em A Cidade dos Rios Invisíveis, que começa na estação Brás da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos), viaja pela Linha Safira, chega até o Jardim Romano, caminha por suas ruas e becos até finalmente alcançar as margens do rio Tietê. A peça, que está na sexta temporada e acaba nesse fim de semana, encerra a Trilogia das Águas, desenvolvida pelo grupo em cima das enchentes que acometem a região, alvo de sensacionalismo da imprensa e do descaso público.

A vista do trem para os bairros da zona leste de São Paulo. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Encaramos a experiência de assistir ao espetáculo. Um pouco antes do início, veio o alerta: ele tem três horas e meia de duração – o que pareceu um pouco aterrorizante.

Embarcamos no primeiro vagão sentido Jardim Romano. Através de um dispositivo, ouvíamos algumas narrativas poéticas entremeadas por entrevistas. "A gente, que vive de catar papelão, é quem limpa mesmo a cidade. Quando vamos pedir emprego, a gente, que é analfabeto, não consegue. Aí, vamos pro cangaço mesmo", diz um senhor nordestino em uma delas.

Os atores performam dentro do trem, diante da estranheza do próprio público e de quem está ali apenas cumprindo seu trajeto. Eles colam post-its nas paredes, nos corrimãos e interagem com as pessoas sem falar uma palavra sequer.

Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Quando chega ao bairro, a apresentação ganha fôlego, ainda que a chuva insista por toda a tarde. Atores e público recebem guarda-chuvas. Um dos destinos é a sede do Estopô, um sobrado simples que abriga uma instalação artística. Cada cômodo ali foi inspirado na história de vida de um morador.

O quarto, no segundo andar, abarrotado de bonecas, faz jus à fábula de terror contada por uma garotinha, que, dormindo em sua casa alagada, afirmou que "Sandy", sua boneca, mexia os braços à noite.

O quarto de bonecas na sede do Coletivo Estopô Balaio. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

João Júnior, diretor artístico do coletivo e do espetáculo, explica melhor o núcleo formado por atores profissionais e iniciantes. "Esse processo de virar ator vai se dando dentro do Estopô. Alguns se emancipam e até criam outros coletivos", conta, com orgulho.

Potiguar, ele botou os pés no Jardim Romano em 2011, a trabalho, quando o bairro passava por uma enchente terrível. "Os relatos das crianças eram sempre fantásticos sobre essa experiência com as águas. E a dor ficava sempre com os pais", relembra. Além de se encantar com o tema, ele se identificou com a região, composta por muitos nordestinos. A união com ex-alunos de sua terra natal que também migraram para São Paulo acabou dando vida ao coletivo.

Seu Antônio exibe foto de sua falecida esposa, dona Raimunda, que costumava colaborar com o coletivo de teatro. Foto: Larissa Zaidan/ VICE

De início, as águas não foram tão tranquilas. "Vimos que precisávamos disputar um território simbólico no bairro. Não tinha teatro aqui. A memória do Jardim Romano era pautada pela enchente, pela violência policial, pelo tráfico", detalha João. Com o tempo e com a confiança da vizinhança, ali o grupo se instalou e se misturou.

No meio da peça, moradores saem de suas casas, beijam a equipe, sorriem, acenam de dentro do ônibus e, vez ou outra, atuam, contam suas histórias de vida em um programa de rádio fictício que integra a apresentação.

Foto: Larissa Zaidan/ VICE

A chegada do teatro não resolveu o problema da enchente, mas passou a trazer novos ares pra quem estava na área. Além de integrar o Estopô desde o começo, Keli atua e faz produção executiva. Há 16 anos na região, ela explica o estranhamento dos habitantes no momento em que o grupo aportou ali. "Quando chega gente nova aqui, eles acham que é polícia, repórter ou alguém que quer pegar dinheiro e se aproveitar de alguma maneira." 

A vida de atriz mostrou um novo norte para sua nau, mas não alterou totalmente sua rotina enquanto mulher periférica. "É difícil. Entra água na minha casa ainda hoje. Muitas vezes me apresento, volto pra casa e está tudo alagado", suspira. "Mas nunca deixei de sorrir. Nunca deixei de apresentar o espetáculo por isso."

Foto: Larissa Zaidan/ VICE

Depois da longa travessia, A Cidade dos Rios Invisíveis chega ao seu destino final. Ali, enchendo os olhos de lágrimas de parte dos espectadores, cada personagem dá seu recado ao grande antagonista dessa história, réu que ainda não foi julgado culpado nem inocente: o transbordante Rio Tietê.

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