A Cidade dos Rios Invisíveis: a fantasia como enfrentamento

Por Carol Marinho Martin

Jardim Romano, 08.10.2016

Uma das obras mais conhecidas do escritor italiano Ítalo Calvino, “Le città invisibili” (As cidades invisíveis), de 1972, é o texto de inspiração do Coletivo Estopô Balaio. O grupo, que se auto define como “coletivo de artistas formado há cinco anos na cidade de São Paulo que conta em sua maioria com a participação de artistas migrantes”, foi buscar em Calvino a essência da construção da narrativa e da poeticidade das conversas entre os personagens Marco Polo e Kublai Khan sobre 55 cidades imaginárias. Mas seria o Jardim Romano uma cidade imaginária? Sim e não. Explico.

A peça começa na Estação Brás da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Ali, são passadas informações sobre a viagem e o manuseio do equipamento de som utilizado no trem até o Jardim Romano. Cabe mencionar a orientação do diretor João Júnior quanto ao cuidado ao utilizar o celular para fotografar pessoas e ambientes privados. Isso porque o Coletivo propõe que nosso olhar diante do espetáculo e do bairro seja o de estrangeiro e não o de turista. Essa frase ecoou na minha cabeça durante toda a peça: o que seria o olhar de estrangeiro e o de turista?

O percurso por oito estações da Linha 12 – Safira da CPTM até o Jardim Romano dura cerca de 40 minutos, tempo em que todos os espectadores usam um fone de ouvido com trilha de música e narração sobre os bairros do caminho, tais como Tatuapé e São Miguel Paulista. Os atores escrevem em post-its mensagens para reflexão tanto do espectador quanto dos usuários do trem, como essa:
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E chegamos então ao Jardim Romano.

Primeiro, a cidade que não é imaginária. O bairro fica no extremo leste da cidade de São Paulo e faz divisa com os municípios de Guarulhos ao norte, Itaquaquecetuba ao leste, e ao distrito de Itaim Paulista ao sul. Próximos, estão o Rio Tietê e o Córrego Três Pontes. O fato mais notável que pôs o Jardim Romano nas manchetes de jornais foi a terrível enchente provocada por chuvas constantes em dezembro de 2009, que deixou o bairro imerso em água suja e esgoto durante 3 meses. Sim, o bairro ficou alagado durante 3 meses. Veja aqui, aqui e aqui.

Essa saga das águas é relatada durante o espetáculo por quem viveu e sobreviveu a esse período, seja pelos próprios moradores em discursos gravados em áudio e vídeo, seja por atores que dão vozes às histórias dos moradores, seja pelos próprios moradores que “atuam” recontando suas memórias e de seus vizinhos. Essas histórias não são imaginárias, elas estão vivas e presentes na consciência dos moradores, nas marcas de água e lama nos muros e nas casas alagadas (muitas delas com dois andares, tendo em vista a necessidade de se “mudar” para o andar superior em caso de chuva), no lixo acumulado à beira do Rio Menino.

Percorremos as ruas do Jardim Romano e visitamos a sede do Coletivo, casas, comércio local, vielas e espaços abandonados. Aqui cabe falar da cidade que é imaginária e do olhar do estrangeiro e do turista.

A camada visível (e não imaginária) do bairro é mesmo a precariedade da estrutura das casas, a poeira que faz coçar os olhos e que com chuva vira lama e empoça. Esse é o olhar do turista, daquele que ocasionalmente vai até o bairro em busca de entretenimento provocado por uma peça de teatro. O olhar do estrangeiro, aquele que é de outro lugar ou que não se considera pertencente a lugar nenhum, percebe então a cidade imaginária: um bairro que aborda a vida, na medida do possível, com leveza, multiplicidade, esperança e poesia.

Parece difícil supor que um bairro tão sofrido possa emergir da água e da lama e compor uma narrativa poética que possa despertar emoção, harmonia ou algum tipo de apreciação estética ou sentimento de beleza. Mas a potência de vida é tão forte que estampa muros com versos e pássaros. Ainda que o Poder Público tenha escolhido esquecer-se do Jardim Romano e torná-lo invisível ao contexto da cidade, o bairro usa a fantasia para espantar a resignação e criar uma cidade imaginária em que a vida segue e prossegue a despeito das forças da natureza.

O espetáculo dura cerca de quatro horas e muito é vivido, pensado, falado, ouvido, experimentado durante esse tempo e depois dele. Termina às margens do poluído Rio Menino, que ganha homenagem em forma de música, para que não nos esqueçamos de que as fatalidades ali ocorridas não podem ser facilmente imputadas a desastres naturais, mas à irresponsabilidade do Poder Público. Fica evidente pra mim que não há espaço para o conformismo com a situação e o descaso do Estado. Pelo contrário: iniciativas como a do Coletivo Estopô Balaio, de se instalar no bairro e ali criar junto aos moradores uma narrativa poética que transcende o olhar ora piedoso ora superficial, mostram arte e cultura como marcas de resistência e como potência na árdua tarefa de não sucumbir ao aniquilamento do sistema.

Pra conhecer mais sobre esse espetáculo e sobre o trabalho do grupo, veja aqui e aqui.

Pra ler ouvindo “Da Lama ao Caos”, de Chico Science e Nazão Zumbi:

“Que eu desorganizando posso me organizar
Que eu me organizando posso desorganizar
Da lama ao caos, do caos à lama
Um homem roubado nunca se engana”

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